LGBTI+: eleição da intolerância organizou a resistência

Comunidade relata agressões feitas por seguidores do presidente eleito, busca por cursos de autodefesa e vêem com pessimismo o futuro no país

por Marília Parente ter, 13/11/2018 - 09:43
Ana Júlia Costa/divulgação Academias de autodefesa especializadas em mulheres e no público LGBTI+ estão atendendo a uma demanda ainda maior Ana Júlia Costa/divulgação

Foi como se todos os espaços espaços seguros tivessem sido extintos. No mesmo ônibus e horário de sempre, 17h20, segundo registravam as mensagens em sua conta no Whatsapp, Dandara* abriu uma foto da deputada Manuela D’Ávila, há pouco derrotada em sua empreitada de tentar a vice-presidência do país, no celular. Um homem alto o suficiente para olhar a tela de cima para baixo passou a encarar a moça. “Ele vestia uma camisa do Brasil. O ônibus estava lotado e só eu e um senhor sentado, com a cabeça à altura da cintura dele, vimos quando ele tirou uma pistola preta da cintura e apontou para baixo junto ao corpo”, descreve Dandara.

Apavorada, ela teve que obedecer à uma ameaça do passageiro. “Eu estava na passagem dele para a porta de saída do ônibus. Ele ainda falou assim: ‘venha para cá e eu vou praí, que é melhor para todo mundo’. Quando troquei de lugar, ele guardou a pistola e desceu”, completa. “Estou assustada, depois disso cheguei em casa e chorei muito. Acho que a atitude dele tem a ver com os discursos de Bolsonaro”, continua. Bissexual, Dandara, desde então, não anda mais de mãos dadas com sua companheira na rua, por medo.

Para Igor Andrade, membro do Coletivo Rua-Juventude Anticapitalista, o pavor de Dandara diante da conjuntura política do Brasil não é exceção na comunidade LGBTI+. “Bolsonaro foi um dos propulsores do incentivo à intolerância e, por mais que ele tente negar isso, acaba atraindo para o campo dele pessoas intolerantes, que pregam supremacias de cor, gênero e orientação sexual. Como ele respalda esse discurso violento, acaba instigando pessoas que agora sentem que podem fazer tudo”, explica. De acordo o ativista, além do medo das agressões físicas, a comunidade enfrenta ainda mais atribulações emocionais. “Muita gente tem relatado depressão e ansiedade. Acompanhamos inúmeras declarações de ameaças verbais e físicas à população LGBTI+ diretamente relacionadas à vitória de Bolsonaro”, acrescenta.

Embora insista que não tem nada contra a comunidade LGBTI+, em novembro de 2017, Bolsonaro chegou a ser condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por suas declarações homofóbicas ao programa CQC, exibido pela TV Bandeirantes, em 2011. Após ser questionado pela equipe da atração sobre o que faria se tivesse um filho gay, o político disparou: “Isso nem passa pela minha cabeça, porque eles tiveram uma boa educação. Eu sou um pai presente, então não corro esse risco”, afirmou.

O processo ainda tramita na Justiça, mas a pena estabelecida em 2015 era o pagamento de uma indenização de R$ 150 mil por dano moral coletivo. O histórico do presidente eleito, segundo Igor Andrade, ligou o sinal de alerta dos movimentos sociais. “Estamos nos organizando em grupos voluntários de ajuda psicológica, terapia e de troca de informações. À medida em que a opressão avança, nossa organização aumenta”, afirma.

Tão chocante quanto ter sido intimidada por um desconhecido no ônibus, foi receber mensagens ofensivas de familiares e amigos de longa data. “Gente que eu conhecia da Igreja me mandou recados pelo celular, me chamando de ‘vabagunda’ e ‘esquerdopata’. Meu melhor amigo do ensino médio me escreveu: ‘feminazi, Bolsonaro vai ter teu presidente’”, lamenta Dandara.

Um casamento feliz e uma vida na educação estavam nos planos da jovem, antes das eleições. “Acho que minha vida não vai ser mais nada do que eu imaginava, parece que meus projetos não existem mais. Porque meu único projeto está sendo sobreviver”, desabafa.

Camila vestia uma camisa com os dizeres "Ele Não" quando foi empurrada por um desconhecido. (Acervo Pessoal)

“Disse que a vontade dele era me jogar na frente do ônibus”

Dois dias antes do ato que levou centenas de milhares de mulheres de todo o país sob o mote “Ele Não”, a estudante Camila Vilanova estampava os dizeres em uma camisa quando foi surpreendida por um desconhecido, à luz do dia, na Avenida Conde da Boa Vista, uma das mais movimentadas do Centro do Recife. “O homem veio na minha direção, me empurrou forte e caí no meio da rua. Disse que a vontade dele era me jogar na frente do ônibus, que só não fez isso ‘porque Bolsonaro ainda não é presidente’ e me chamou de feminista nojenta”, relata Camila.

Após ver o agressor deixar o local sorrindo, Camila ficou perplexa com a inércia das pessoas que presenciaram o empurrão. “Tinha um monte de gente na parada do ônibus e ninguém fez nada. Fiquei muito assustada, em pânico, não consegui reagir”, surpreende-se. Lésbica, ela acredita que a homofobia cresceu com a ascensão política de Bolsonaro. “Estou amedrontada, a homofobia parece ter crescido e as pessoas estão claramente mais violentas”, completa.

“Quando o capitão ganhar vai acabar essa safadeza”

Meio dia, no Centro do Recife. O estudante Gabriel Silva caminhava despreocupado em uma rua pouco movimentada graças à ameaça de chuva. “Dois homens vestindo camisas de Bolsonaro começaram a me seguir. Eles falaram: ‘quando o capitão ganhar vai acabar essa safadeza’, que ‘essa safadeza não existia mais’. Eu não usava nenhum tipo de adesivo, mas eles me viram como gay”, lembra. Gabriel apressou o passo e conseguiu entrar em uma loja, despistando os agressores. A sensação de solidão, no entanto, ainda o acompanha. “É como se não tivesse ninguém por você. Me senti vulnerável, achei que fosse morrer. Depois de tudo que passei para aceitar quem eu sou, pela primeira vez tive medo de voltar para o armário”, afirma.

Após a perseguição, Gabriel passou alguns dias sem ir à faculdade, por medo do percurso. (Acervo Pessoal)

Depois do incidente, foi preciso muita coragem para voltar a frequentar a faculdade. “Estava voltando da aula quando aconteceu. Passei dois dias sem ir estudar, tentando evitar o caminho e ser espancado, torturado ou agredido”, conta Gabriel. Além da intimidação física, o estudante passou ainda por outras situações de agressão verbal, vindas de pessoas que se identificaram como eleitores de Bolsonaro. “Estava na frente da minha casa, era uma terça-feira. Um caminhão parou no sinal e os homens dentro dele começaram a gritar ‘Bolsonaro 2018’, me chamando de ‘viado’, dizendo que era ‘pra votar no mito’”, lembra.

Auto-defesa

Há dois anos e meio, o advogado Alisson Paes resolveu criar o próprio curso de auto-defesa para pessoas LGBTI+, o Piranhas Team. Vítima de violência física motivada por homofobia, ele participava de curso pré-vestibular para homossexuais e transgêneros, onde constatou que os incidentes de violência que vitimam pessoas da comunidade acontecem com frequência.

“Entrei em contato com uma academia, que me indicou instrutores de krav maga, que é basicamente defesa pessoal. Queríamos criar um grupo onde as pessoas se sentissem seguras para aprender, sem sofrer discriminação”, explica. Com duas turmas lotadas, o curso acaba de abrir uma nova, para dar conta dos novos interessados.

Para Alisson, o crescimento da procura pelas aulas está ligado à atual conjuntura política. “Participo de diversos coletivos LGBTI+, incluindo a Frente Ampla do Rio de Janeiro, que surgiu depois do resultado do primeiro turno das últimas eleições presidenciais, quando vários coletivos começaram a pensar em estratégias ligadas à nossa segurança”, comenta.

Com o objetivo de atingir quem não chega ao curso, o Piranhas Team acaba de lançar uma cartilha com dicas de segurança para LGBTI+’s, com orientações básicas para como reagir diante de situações de agressão ou a quem recorrer, caso seja necessário. “Comunicar o trajeto” a ser feito a pessoas de confiança e manter “a bateria do celular carregada” são algumas das recomendações expressas no material. “Toda semana depois do treino temos feito rodas de conversa para ouvir os relatos e estimular as pessoas a compartilhar experiências de como elas estão lidando com o momento”, acrescenta o ativista.

Curso de defesa pessoal para LGBTI+'s abriu nova turma para dar conta dos interessados. (Ana Júlia Costa/divulgação)

Procura por ajuda é grande

Movido pelo desejo de prestar auxílio jurídico a LGBTI+’s vítimas de violência durante o período eleitoral, Alisson chegou a disponibilizar o número do próprio celular nas redes sociais. O advogado ficou surpreso ao receber cerca de 15 mil mensagens via WhatsApp, o suficiente para travar o aplicativo, segundo ele. “Não tinha como responder. Vi que essa estratégia não funcionaria, então estou vendo outras formas de ajudar. As pessoas estão muito amedrontadas, sem se sentirem acolhidas”, conclui.

Com o objetivo de auxiliar pessoas que sofreram violência motivada por política, a Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional Pernambuco (OAB-PE) lançou o Observatório da Intolerância Política. O projeto permite que o público encaminhe suas denúncias à instituição via e-mail (observatorio@oabpe.org.br), WhatsApp (81. 9.9247.2115) ou mesmo presencialmente, no setor de protocolo, localizado na sede (Rua Imperador Pedro II, 346, bairro de Santo Antônio, Centro do Recife).

Na ocasião do lançamento da plataforma, o presidente da OAB-PE, Ronnie Duarte, declarou que a ferramenta foi criada diante da “escalada de episódios, inclusive com agressões físicas perpetradas contra homossexuais e mulheres, geralmente tendo como pano de fundo questões relacionadas às opções políticas adotadas pelas pessoas”.

De acordo com a presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem, Maria Goretti Soares, a instituição não tem autonomia para tomar decisões. “A gente se reúne e analisa as denúncias, encaminhando o material enviado para os órgãos competentes, como a Polícia Federal, a Defensoria Pública e o Ministério Público. Também estamos à disposição para orientar o público sobre como proceder em cada caso”, explica.

Desde de o dia 15 de outubro, quando foi lançada a ferramenta, a OAB já recebeu um total de 195 contatos, incluindo elogios à iniciativa de denúncias sem provas. “Cerca de 50% são denúncias de fato, com provas anexadas. Nossa orientação é que as pessoas não fiquem caladas, pois o agressor denunciado tende a recuar”, completa Maria Goretti.

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