Na campanha de imunização do Recife, a invisibilidade da periferia às vistas da gestão pública foi novamente exposta com a disposição de apenas dois dos 19 pontos de aplicação em regiões de maior vulnerabilidade social. Distantes das doses, distribuídas em locais de vacinação que poderiam ser distribuídos com equidade, o limite do acesso à Saúde ultrapassa a insegurança dos bairros e a frágil condição financeira da população, sobretudo da negra, que recebeu bem menos doses que brancos e pardos.
Com 1.237.614 adultos que precisam ser imunizados, nem 31,36% do público está devidamente protegido. O Vacinômetro da campanha, o qual a Secretaria de Saúde (Sesau) informa atualizar diariamente, apesar do último registro ser da terça-feira (27), mostra que só 388.047 recifenses concluíram o ciclo vacinal com duas doses ou com a dose única da Janssen.
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Baixa proteção aos negros
No recorte racial, o Plano Vacina Recife evidencia uma realidade largamente desproporcional. A desconfiança dos moradores de comunidades sobre um possível propósito discriminatório é apresentada na entrega do imunizante. Só 44.229 negros estão protegidos contra a Covid-19 na capital. O número é bem inferior aos 157.958 de pardos vacinados. A desigualdade é ainda maior em relação aos brancos, que representam 177.804.
Para exaltar o modo como trata a pandemia desde janeiro, o prefeito João Campos (PSB) forçou uma comparação dos índices do Recife aos de Nova York. A diferença é que, enquanto decretos de convivência com a pandemia ainda reprimem as atividades comerciais em Pernambuco, que acumulou 587.849 infectados e 18.702 óbitos na quarta (28), na metrópole norte-americana o fim das medidas restritivas foi anunciado por uma queima de fogos no dia 15 do mês passado.
Dentre a pouca oferta do auxílio municipal e a ampliação da entrega de imunizantes, uma das ações de maior orgulho da gestão é a disposição de 26 pontos de vacinação entre os oito distritos sanitários do município. Porém, sete deles são híbridos - funcionam como centros e drive-thrus - e atendem ao público da mesma região.
Na Zona Sul, apenas a Unidade Pública de Atendimento Especializado (UPA-E) do Ibura garante o imunizante aos bairros do entorno. Morador da UR-10, o quitandeiro Samuel da Silva, de 63 anos, precisou cruzar a cidade para conseguir tomar a segunda dose no bairro de Dois Irmãos, na Zona Norte.
"Foi meio contramão, mas valeu à pena ir para finalizar com a segunda dose. Tive que ir lá porque mais perto não tinha vaga", reclamou o comerciante.
Da UR-05, o feirante João Sobral, 62, conta que já deveria ter concluído o esquema vacinal. O prazo para a segunda dose expirou nessa terça e ele ainda não conseguiu o novo agendamento em nenhum centro. Para a primeira, desembolsou duas passagens de ônibus até o Geraldão, na Imbiribeira, mas ainda não sabe quando vai conhecer o sentimento de proteção. "Minha sobrinha não tá conseguindo. Só tá dizendo que não tem vaga", relatou.
Sem mais orientações no aplicativo Conecta Recife e desconectado do mundo digital, Seu João pretende ir a um posto de saúde na região para tentar marcar a dose complementar. A vizinha de bairro, Dona Lúcia de Souza, 71, já tentou informações em uma Unidade Básica de Saúde, mas saiu decepcionada sem saber ao certo o que fazer.
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"A vacina não tá muito boa não porque falta muita gente até para tomar a primeira. Tem um posto ali, mas não sabem informar nada a agente e a pessoa dá não sei quantas viagens, e 'diz eles' que não sabem", criticou. "Devia botar posto de vacinação e liberar logo para o pessoal com menos de 30 anos", acrescentou a idosa.
Com a mobilidade reduzida pela idade avançada, se não fosse o filho para levá-la de carro até o imunizante, Dona Lúcia estaria exposta ao vírus no transporte público ou enfrentaria uma longa caminhada entre a infraestrutura precária e as condições geográficas do Ibura. "Ia ter que ir de ônibus ou a pé porque ninguém vinha buscar. É longe. Daqui para lá é uma tirada medronha", aponta.
Já na Zona Norte, o Parque da Macaxeira é o principal ponto para a população das áreas de morro. Apesar de morar em Casa Amarela, o dono de um box de reparos em eletroeletrônicos no Mercado Público, Romualdo Oliveira, 61, entende que a cobertura vacinal poderia ser expandida com a descentralização da campanha. "Devia ter aqui no posto, devia ter aqui no colégio. Lugares mais próximos, né?", questionou.
Ele sente na pele outro reflexo da pandemia, a desinformação. Sem ter tomado sequer uma dose, Seu Romualdo admite certo receio pelos possíveis efeitos colaterais e certo desinteresse em participar do Plano Vacina. No mesmo Mercado, a feirante do Alto Santa Izabel, Evânia Xavier, 43, aguarda a segunda vacina e confirma que muitas pessoas estão com medo dos imunizantes por falta de conscientização. Ela cobra por mais diálogo e propõe ações educativas da Prefeitura para convencer sobre os benefícios de se imunizar contra a Covid-19.
"Tem pessoas que não querem ser vacinadas. Tá faltando informação para o pessoal que tá achando que vai tomar e vai ficar doente [...] todo mundo já tomou vacina um dia e teve reação", incentiva Evânia, que ganhou um reforço com o depoimento de Seu Samuel, "tomei a primeira e não tive reação, e a segunda também não", garantiu.
Nesse ponto, Recife e Nova York se aproximam. Com cerca de dois milhões de nova-iorquinos que ainda não foram vacinados, o prefeito Bill de Blasio tenta meios para confrontar o negacionismo. Com apenas 60% dos cidadãos protegidos com as duas doses, nessa quarta (28), o gestor norte-americano anunciou que vai pagar US$ 100, equivalente a R$ 500, para quem participar da campanha anticovid.
Inclusas nos distritos sanitários VIII e VII, o levantamento da Prefeitura informa que 51.708 aplicações de segunda dose e dose única foram realizadas na área da Macaxeira, e o total de 31.191 na do Ibura.
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Procurada pelo LeiaJá, a Sesau não soube pontuar quais centros foram entregues em áreas consideradas como periferia, nem o porquê das áreas de morro da Zona Norte ficarem desassistidas pela campanha.
Sobre a escolha dos pontos, a Secretaria de Saúde explicou que os locais são escolhidos em centros exclusivos para evitar aglomeração, por isso não pretende utilizar as unidades de saúde. O objetivo é garantir o funcionamento dos demais serviços da rede municipal com menor risco de transmissão.
Em nota, a Sesau conta que os locais 'estratégicos' são definidos com "facilidade de acesso e com parada de ônibus próximas, contemplando tanto quem vais se vacinar a pé, quanto quem utiliza transporte público, carro, moto ou bicicleta", complementou.
Os locais de vacinação contra a Covid-19 no Recife funcionam todos os dias, das 7h30 às 18h30, mediante agendamento.
Os centros informados pela Prefeitura são:
- Sest Senat (Porto da Madeira)*;
- Porto Digital (Bairro do Recife);
- Unicap (Boa Vista)*;
- Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), em Dois Irmãos*;
- Parque de Exposição de Animais, no Cordeiro;
- Unidade de Cuidados Integrais (UCIS) Guilherme Abath, no Hipódromo;
- Compaz Ariano Suassuna, no Cordeiro*;
- Ginásio Geraldão, na Imbiribeira*;
- Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), na Tamarineira*;
- Parque da Macaxeira, na Macaxeira*;
- UPA-E do Ibura;
- UniNassau, nas Graças.
*representam pontos híbridos que atendem como centro e drive-thru.
Os locais exclusivos na modalidade drive-thru são:
- Fórum Ministro Artur Marinho - Justiça Federal de Pernambuco (Avenida Recife), no Jiquiá;
- Juizados Especiais do Recife, na Imbiribeira;
- Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na Cidade Universitária;
- Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Bairro do Recife;
- BIG Bompreço de Boa Viagem;
- BIG Bompreço de Casa Forte;
- Carrefour (Torre).
Fotos: Júlio Gomes/LeiaJáImagens