Foi com as botas ainda sujas da terra onde vive há 45 anos, desde que nasceu, que o agricultor José Severino Elias da Silva, conhecido como Branco, cruzou pela primeira vez as portas de uma penitenciária. Em uma cela apertada, foi obrigado a explicar para 28 presos o porquê de estar em uma cadeia com suas roupas de trabalho. Virou piada. “Ficaram tudo mangando d’eu, que estava de botas. Dá vontade de tocar fogo nelas, para não me lembrar disso nunca mais. Fui muito humilhado, jogado ali como se fosse um bandido”, lamenta Branco. Morador do Engenho Fervedouro, em Jaqueira, na zona da Mata Sul de Pernambuco, o agricultor foi preso no dia 16 de junho, após chegar do trabalho e ser surpreendido pela polícia na porta de casa, tendo sido liberado apenas no dia seguinte. A aguardada paz, contudo, não veio. Há uma semana, Branco descobriu que está jurado de morte. Seu nome e o de outros nove camponeses do Fervedouro circulam em uma lista de marcados para morrer. A comunidade atribui as ameaças à empresa Agropecuária Mata Sul S/A, com quem vive em situação de conflito fundiário.
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“Na delegacia, perguntei o porquê de estar sendo preso. Me disseram que eu vendia drogas e negociava armas no meu bar. Nunca tive bar, droga ou arma. Um pai de família preso na frente da esposa e dos netos, algemado, uma vergonha para mim”, lamenta Branco. Querido em Fervedouro, onde garante não haver histórico de tráfico de drogas, e descrito pelos vizinhos como alguém de temperamento “calmo” e de fácil trato, o trabalhador garante que nunca manuseou uma arma. “Só minha foice e minha enxada, que são instrumento de trabalho. Minha rotina é essa: acordo todo dia de 5h da manhã, minha esposa faz um cafezinho, vou para o sítio e só volto para casa no final do dia”, relata.
Comunidade atribui ao conflito com a Agropecuária S/A, casos de abordagens e prisões tidas como injustas, a exemplo da de Branco. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
Nem Branco nem seus vizinhos sabem de onde partiu a informação de que há uma lista de camponeses marcados para morrer. Diz-se na comunidade que há até fotografias dos camponeses ameaçados. “Além de ir preso injustamente agora estou na lista do ‘homem’ para morrer, só Deus por a gente. Pretendo lutar, quem deve ir embora do engenho é ele, não nós, que somos nascidos e criados aqui. Sou um matuto com o nome sujo. Vou para onde?”, questiona.
“Ou há de ser Cavalcanti…”
"Quem viver em Pernambuco, não há de estar enganado: Que, ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado”, diz uma famosa quadra popular pernambucana do século XIX, período em que a Revolução Praieira questionava a concentração fundiária no estado. O nome que Branco não ousa citar é o de Guilherme Cavalcanti Petribú Albuquerque Maranhão, fazendeiro e empresário, que, segundo os camponeses, se intitula dono da empresa Agropecuária Mata Sul S/A. Membro de uma tradicional família do estado, Guilherme é irmão de Marcello Maranhão (PSB), prefeito de Ribeirão, vizinha a Jaqueira.
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Através de uma consulta do CNPJ da empresa na Receita Federal, é possível observar que não é o nome de Guilherme que figura entre os responsáveis pela instituição, mas os de Regina Celia Giovannini Lima Torres e José Syllio Diniz Araújo, ambos identificados como diretores. O LeiaJá entrou em contato com o telefone cadastrado pela sociedade junto à Receita, mas foi informada de que o número não possui vínculo com a empresa.
Chama atenção ainda o fato de que, quando arrendou as terras, a empresa possuía outro nome: Negócio Imobiliária S/A. Para além de identificação, contudo, curiosamente duas atividades completamente diferentes foram informadas. Se, a princípio, a sociedade anônima fechada alegava atuar com “compra e venda de imóveis”, com a nova denominação, foi declarada como atividade principal a “criação de bovinos para corte”.
Guilherme Maranhão fotografado na comunidade. (CPT/cortesia)
Embora seu nome não apareça no registro da Agropecuária Mata Sul S/A, Guilherme já foi flagrado algumas vezes na comunidade. Um dos camponeses incluso na lista de marcados para morrer, Ernande Vicente da Silva foi um dos nove agricultores que registraram, no dia 24 de abril, em boletim de ocorrência, uma tentativa de atropelamento que teria sido praticada por Guilherme Maranhão. “Eu estava com mais 15 agricultores, na beira da pista, quando ele avançou com seu carro para cima de nós. A gente pulou, tirou o corpo, e ele voltou de marcha ré e tentou de novo”, conta Ernande.
De acordo com agricultor, as investidas de Guilherme não teriam parado por aí. Por volta das 18h do dia 16 de junho, Edeilson Alexandre Fernandes da Silva, outro dos moradores de Fervedouro a constar na lista, foi atingido por sete tiros enquanto trafegava de moto em uma das pistas próximas ao engenho e só sobreviveu porque conseguiu pilotar até a comunidade, onde foi socorrido. Ele segue internado em estado grave, em um hospital da região. “Neste dito dia, estava circulando aqui no Engenho uma SW4 [carro de luxo, fabricado pela montadora Toyota] preta, de propriedade do senhor Guilherme, eu vi e pulei um muro. Ele passou por mim balançando a cabeça, como quem diz, ‘tu é o próximo’. Quando foi de tarde, Edeilson foi baleado. Pura coincidência?”, questiona Ernande.
Escalada da violência
Policiais armados intimidando a comunidade foram flagrados por moradores. (Reprodução/Instagram)
Em janeiro deste ano, a Agropecuária Mata Sul S/A já havia sido acusada de destruir dez mil pés de banana de um agricultor, em Barro Branco, uma comunidade vizinha ao Engenho Fervedouro. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que auxilia os posseiros, no dia 3 de abril, funcionários da Agropecuária Mata Sul S/A tentaram cercar uma das fontes de água utilizada para subsistência da população, ação que não se concretizou, diante da mobilização dos posseiros. Ainda segundo informações da CPT, no dia 09 de maio, policiais e seguranças privados contratados pela Agropecuária Mata Sul S/A intimidaram e ameaçaram as famílias da comunidade. No mesmo mês, o LeiaJá noticiou a presença de policiais fortemente armados no Engenho Fervedouro, alegando que davam cobertura a uma ação de cercamento de uma suposta área da empresa.
Segundo relatos dos camponeses, a segurança da empresa era feita por policiais militares da ativa e da reserva de Alagoas, que circulavam armados, portando algemas e ameaçando a população. Em resposta, a CPT formalizou uma denúncia, que desencadeou a abertura de um inquérito na corregedoria de polícia do estado. “A gente não confia na polícia local, queremos um delegado especial, de fora, para esse caso. O que as autoridades estão esperando? Que ocorra outra tragédia? Que alguém morra? Queremos uma atitude do governador”, cobra Ernande.
Drones, aeronaves e chuva de agrotóxicos
"A gente está sentindo cheiro de sangue", diz Ernande, camponês jurado de morte. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
A situação tem alterado radicalmente o modo de vida comunidade. Em Fervedouro, até o céu mudou de cor. Quando se olha para cima, agora, o tom é de preocupação. Isso porque até drones passaram a ocupar o espaço aéreo da comunidade, nos últimos meses. “Sobrevoam em cima da gente, um negócio de primeiro mundo, algumas pessoas aqui só tinha visto coisas assim na televisão. Tem gente aqui que o banheiro de casa não fica do lado de dentro, mas fora. Já pensou em você no banheiro e um drone em cima da sua cabeça? Perdemos completamente a privacidade”, argumenta Ernande.
Mesmo a chuva, antes celebrada com festa por quem vive do que a terra dá, também passou a despertar desconfiança. Uma moradora que prefere não se identificar relata que presenciou, no dia 7 de maio, o momento em que uma aeronave despejou agrotóxicos sobre lavouras dos camponeses de Fervedouro. De acordo com ela, gotas do produto, altamente tóxico, chegaram a tocar a pele de outros moradores. “Em plena pandemia da covid-19, teve gente como eu que passou uma semana com dificuldade de respirar. O cheiro era insuportável tanto para a gente quanto para pessoas de comunidades vizinhas, que dava uma forte dor de cabeça. Todo mundo sentiu”, relata.
Adriano presenciou chuva de agrotóxicos nas lavouras de Fervedouro, executava por uma aeronave. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
O presidente da Associação de Moradores da comunidade, Adriano Andrade, relata que, ao observar a presença da aeronave, a população correu em sua direção, na tentativa de parar a ação. “Quando o piloto percebeu a aproximação dos agricultores, fugiu. Foi muito pesado terem feito isso com a gente, tiveram pessoas que foram parar no hospital. Se a gente não tivesse impedido, eles tinham destruído toda a nossa lavoura”, destaca. Foi ele um dos trabalhadores e recolher amostras do produto. “A gente pesquisou e viu que eles lançaram pelo menos dois tipos de agrotóxicos pesados. Um compadre meu perdeu tudo, tirava o seus sustento e o da família da plantação”, completa.
O Engenho
Com área total de 527 hectares, o Engenho Fervedouro abriga cerca de 70 famílias de camponeses, as quais, segundo Adriano, perpetuam-se no local há cerca de 100 anos. “Meu pai já está nessa terra há 80 anos e eu há 42 anos. Cresci, me criei e me entendi como gente na lavoura, seguindo os passos dele. Terra boa, lugar de paz, de uns dias pra cá é que a gente não está tendo”, comenta.
Às 17h, moradores fecham portões temendo novas agressões. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Jurado de morte, Adriano conta que as tensões na área aumentaram com o arrendamento das terras à empresa Negócio Imobiliária S/A. “Nossos hábitos mudaram: dá 17h e já está todo mundo dentro de casa, com as portas fechadas. Teve gente que deixou de ir para a Igreja e evita ir na cidade, porque não temos mais segurança. A gente tem medo de sair de casa e a qualquer momento ser alvejado por qualquer um. Do jeito que o clima está, é só o que a gente espera”, pontua.
A assessora jurídica da CPT, Gabriella Rodrigues, que advoga em prol dos posseiros, confirma que os conflitos na região já existiam desde 2013, quando as terras foram arrendadas a Luiz de Sá Monteiro, identificado pela documentação das terras como “pecuarista” e “advogado”. “Depois de três audiências com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a gente já estava chegando a um acordo. Essa nova empresa [Negócio Imobiliária S/A] chegou dizendo que conhecia a situação, mas, do outro lado, entrou na justiça dizendo que os camponeses eram integrantes do MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra] e tentavam invadir o local, tentando incriminá-los. Assim, um conflito que existia pela posse da terra foi ganhando outra conotação, com atuação de milícias e violação de direitos”, lembra.
A reportagem teve acesso ao documento de cessão de arrendamento, de 8 de março de 2018, no qual fica registrado ainda que o prazo do contrato foi ampliado de 30 anos para 60 anos, vigorando até 31 de dezembro de 2072, podendo ser prorrogado pela cessionária "a seu exclusivo critério". “Essa cessão cria um período de graça de cerca de 20 anos, podendo ser prorrogado por mais 20 anos”, destaca a assessora jurídica. Vale ressaltar ainda que, no contrato de arrendamento do Engenho Fervedouro, fica estabelecido que "o arrendatário pagará à arrendante uma renda anual correspondente a 150 (cento e cinquenta) arrobas de boi, pelo preço vigente na praça de Caruaru". “Quando a gente foi procurar ver com a Adagro [Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco], esse valor variava entre R$ 15 mil e R$ 20 mil, para arrendar uma área de quase cinco mil campos de futebol na Zona da Mara canavieira, uma das áreas mais férteis do estado”, reforça Gabriella.
Os posseiros também denunciam que a proprietária das terras, a Usina Frei Caneca S/A, possui dívidas multimilionárias. A reportagem consultou a Certidão Narrativa de Débitos Fiscais da empresa que devia, até o fechamento desta reportagem, R$ 62.522.544,58, à Fazenda Estadual. Já junto ao Tribunal Regional do Trabalho da 6 Região (TRT6), foi possível constatar que a empresa está envolvida em 121 ações trabalhistas. “Existe ainda uma dívida com o governo federal, de mais de R$ 92 milhões. Trata-se de uma usina falida desde 2003, em que nunca houve um processo falimentar, mas que continua arrendando suas terras por um valor ínfimo, como se não tivesse dívida nenhuma”, ressalta a assessora Gabriella Rodrigues.
Demanda por desapropriação
Assim, o presidente da Associação de Moradores explica que a principal pauta da comunidade é a desapropriação do Engenho Fervedouro por parte do governo de Pernambuco, a quem também caberia a iniciativa de reconhecer e regularizar um assentamento no local. “Se fizer isso, o estado vai ganhar muito, porque vai ser uma terra legalizada, onde cada posseiro vai pagar seus impostos. Da maneira que foi, com 40 anos sem pagar nada, qualquer agricultor teria condições de se tornar rendeiro, então a gente espera que o governo pegue as terras pela dívida, sem olhar o lado político. A política passa, mas a vida das pessoas fica”, apela.
A reportagem levou a demanda dos trabalhadores ao Instituto de Terras e Reforma Agrária de Pernambuco (Iterpe), que garantiu que a dívida da usina com o Estado está sendo cobrada pelo Governo de Pernambuco, por meio da Procuradoria Geral do Estado (PGE), a partir de 16 ações de execução fiscal, as quais tramitam na Justiça. O Instituto informa que os processos são físicos e que já há, inclusive, penhora de engenhos para possibilitar o pagamento da dívida.
“Além das execuções fiscais, estão sendo realizadas diversas ações, articulações e orientações relacionadas aos conflitos agrários existentes no Município de Jaqueira, Zona da Mata Sul de Pernambuco, na perspectiva da proteção à vida, segurança, moradia, subsistência e mobilidade das famílias residentes não apenas no Engenho Fervedouro, mas também nos Engenhos Barro Branco, Várzea Velha e Caixa D’água”, coloca o posicionamento.
Segundo o Instituto, depois dessa etapa serão postos em prática os encaminhamentos necessários para “a formalização e legalização fundiária em questão”. Leia a nota na íntegra:
"A dívida da usina com o Estado está sendo cobrada pelo Governo de Pernambuco, por meio da Procuradoria Geral do Estado (PGE), em 16 ações de execução fiscal atualmente em tramitação na Justiça. Os processos são físicos e já há penhora de alguns engenhos para garantir a dívida. Além das execuções fiscais, estão sendo realizadas diversas ações, articulações e orientações relacionadas aos conflitos agrários existentes no Município de Jaqueira, Zona da Mata Sul de Pernambuco, na perspectiva da proteção à vida, segurança, moradia, subsistência e mobilidade das famílias residentes não apenas no Engenho Fervedouro, mas também nos Engenhos Barro Branco, Várzea Velha e Caixa D’água.
O Instituto de Terras e Reforma Agrária de Pernambuco (Iterpe), órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Agrário, vem acompanhando todo o processo no âmbito da Comissão de Mediação e Resolução de Conflitos Agrários de Pernambuco, sendo indicado pela PGE para atuar em algumas ações como assistente para realização de perícia topográfica da área em litígio. Tão logo essa etapa seja vencida, o Iterpe adotará as medidas necessárias para formalização e legalização fundiária da área em questão.
Coordenada pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco (SJDH), a Comissão de Mediação e Resolução de Conflitos Agrários de Pernambuco é composta também por integrantes das secretarias de Defesa Social (SDS), Desenvolvimento Agrário (SDA), Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ) e Procuradoria Geral do Estado (PGE), além de seus órgãos vinculados".