Em meio às polêmicas ações do atual prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), a política de drogas no Brasil volta a ser discutida em todo o território nacional.
Para entender, o LeiaJá buscou ouvir alguns agentes que atuam em diferentes esferas da sociedade, desde o Estado - com suas políticas de redução de danos - até estudiosos da área de psicoativos, profissionais da área de psicologia e usuários recreativos de drogas ilícitas, para suscitar a discussão sobre o tema.
##RECOMENDA##
Não é possível precisar quando as substâncias psicoativas, hoje consideradas ilícitas, começaram a ser utilizadas em terras brasileiras. Entretanto, segundo uma pesquisa sobre o uso de crack realizado pela FIOCRUZ em 2013, os brasileiros já faziam uso de entorpecentes como cocaína e crack já nos anos 80 e 90.
Mesmo com a Lei Antidrogas (11.343/06) que regula as sanções acerca do uso e do porte de drogas ilegais no país, essas substâncias continuam sendo amplamente comercializadas e utilizadas, provocando o encarceramento de traficantes, mas também de usuários.
Segundo o artigo 28 da lei, o usuário não poderia ser mais punido com o encarceramento. O problema é que por não estar explícita a quantidade que uma pessoa pode portar - para diferenciá-la da atividade de tráfico de drogas - qualquer um que estiver com as substâncias pode ser enquadrado enquanto traficante, a depender do entendimento e interpretação do agente da lei.
Encarceramento e política de drogas
Cerca de 622 mil pessoas estão presas por tráfico de drogas no Brasil. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), esse número cresceu mais de 300% após a Lei Antidrogas entrar em vigor.
O que é droga?
Segundo o antropólogo PhD. Edward MacRae, droga é uma relação entre o sujeito que faz o uso da substância e a substância em si, com todas as suas propriedades químicas. Logo, ele não acredita num “superpoder maligno” que essa ou aquela substância tenha, mas numa relação abusiva ou não entre ambos.
Ele alerta para a forma nociva como o Brasil tem tratado a questão das drogas e de como isso só tem contribuído para a perseguição da população negra, pobre e periférica. “[Falar de combate às drogas] é um absurdo! O que está se fazendo é um combate às pessoas… é um combate a determinados setores da população” afirma.
A política proibicionista de combate às drogas sempre gerou graves consequências sobretudo nos números de pessoas presas em decorrência do crime de tráfico. Para entender como ela foi implementada no Brasil, é preciso observar o que foi feito nos EUA entre os anos de 1920 e 1933, pois o modelo de como lidar com a questão foi basicamente o mesmo.
No período em que o país proibiu o consumo do álcool através da Lei Seca (Volstead Act - 1920-1933), ao invés de coibir o uso, a medida acabou por incentivar o consumo e criar terreno fértil para o surgimento de cartéis poderosos e figuras como Al Capone.
Políticas governamentais
Algumas iniciativas que buscam caminhos alternativos ao proibicionismo têm dado certo no Brasil. Uma delas é o Programa ATITUDE, da Secretaria Executiva de Política Sobre Drogas, que está apresentando resultados positivos em Pernambuco. “O ATITUDE começou como um projeto piloto em 2010 e tinha como recorte [de público] pessoas que não tinham moradia, estavam numa situação de muita vulnerabilidade e ameaçados de morte pelo tráfico”, revela Malu Freire, Superintendente de Atenção e Cuidado aos usuários de drogas da secretaria.
O programa funciona com quatro modalidades de atendimento, que vão desde abrigo temporário em casas de apoio, abordagem de usuários nas ruas, internações voluntárias - em que o usuário precisa querer e autorizar - até o encaminhamento para trabalhos, cursos profissionalizantes e a ressocialização através de aluguel de casas populares. “O programa existe em Recife, Jaboatão, Cabo de Santo Agostinho e Caruaru. Cada localidade atende a uma lógica de testar acolhimento e cuidado dos usuários.
Trabalhando no projeto ATITUDE desde o início, Malu fala com a experiência de quem atua com usuários de drogas diariamente. “O que se tem hoje é uma quantidade enorme de usuários que na verdade precisam de cuidados, estão vulneráveis, sofrendo violência a todo momento principalmente na questão dos seus direitos e estão sendo presos, pela questão do uso, enquanto o tráfico, os traficantes não representam um número expressivo dentro dos presídios. Por não ter isso muito bem definido os usuários estão sendo encarcerados”.
Redução de danos
O Programa ATITUDE funciona sob a lógica de redução de danos, perspectiva que tem demonstrado ser uma alternativa para se lidar com as drogas no Brasil e em diversos lugares do mundo como Portugal e Holanda.
“Programas como o ATITUDE tem um papel dificílimo e muito importante que é o de mostrar para a sociedade que as pessoas que usam drogas são cidadãs e precisam ter seus direitos garantidos” reflete Julia Santos, psicóloga e doutoranda da UNICAP.
A psicóloga diz que a política proibicionista só contribui para a manutenção da violência. “O tráfico de drogas mata muito mais do que o efeito da substância. O tráfico gera até a violência institucional de profissionais [que não querem] receber pessoas que usam crack, por terem preconceito. Então, de que violência estamos falando?”, questiona.
A doutoranda, que trabalhou no ATITUDE nas Ruas, afirma que foi uma experiência transformadora em sua vida. “Nunca tinha visto uma pedra de crack na minha vida, nem tinha trabalhado, atendendo usuários de crack em ameaça de morte nas suas comunidades. Era tudo muito novo pra mim. Mas, de uma forma muito rápida, fui me sentindo empoderada do meu papel ali, fui me apaixonando e fui me colocando de forma mais ativa. Na segunda semana, conheci uma pedra de crack (ou algumas). Precisei passar pela minha primeira aventura em campo, pular um muro para conseguir acolher um rapaz que tinha sofrido uma tentativa de homicídio e estava muito machucado. Passei em torno de 1h conversando com ele, ouvindo sua história e construindo com ele estratégias de cuidado. Ele fumou algumas pedras de crack durante nossa conversa. E foi assim que me senti batizada e pude ver que realmente eu estava disponível para acolher pessoas que tinham prejuízos com seu uso de crack. Especialmente o social”, conta.
Uma das histórias mais tocantes que a profissional se recorda em sua trajetória, é a de uma transexual,que atendeu na Casa de Apoio. “Ela chegou com roupas masculinas, se identificando a partir do seu nome de registro. Até que outra usuária do Programa disse à ela “aqui podemos ser quem a gente é”. E, no segundo dia, Vanessa (nome fictício) apareceu lá”, relembra.
A psicóloga é categórica ao dizer que o que os usuários de drogas, em especial o crack, precisam de acolhimento, apoio e garantias de direitos. “Pessoas que usam crack não são zumbis. Pessoas que usam crack que estão em situação de rua, sem se alimentar, tomar banho, em condições precárias de saúde e higiene. É uma questão bem importante poder resgatar junto a cada um deles sua história de vida como cidadão para além do uso prejudicial da droga e mesmo da ameaça de morte. A partir do momento que a pessoa vê que tem direitos e que precisa ser protegida, cuidada e acolhida, é possível termos mudanças bem significativas na condição de cada uma”.
Uso recreativo de drogas
A ideia de que se o usuário utiliza o crack uma única vez é o suficiente para fazê-lo tornar-se dependente é uma espécie de senso comum na sociedade. Mas será mesmo que isso é verdade? Maurício*(nome fictício), 35, é usuário de crack de modo recreativo há mais de 10 anos e afirma que nunca teve problemas graves em sua vida por conta do uso da substância. Seu primeiro contato com as drogas ilícitas foi aos 12 anos no bairro em que morava. Quando ficou mais velho, passou a fazer uso de maconha e cocaína entre amigos e em momentos de festividade. Segundo ele, a família sabia de seus hábitos.
Maurício que é formado em História e tem mestrado na mesma área pela UFPE, afirma que o uso de drogas nunca foi um fio condutor de sua vida. “No começo, meus pais tinham medo. Temiam que eu cometesse crimes por conta desse uso, mas como eu sempre tive uma vida normal, eles ficaram mais tranquilos. Entrei na universidade aos 18 anos, fiz mestrado, trabalho, dou aula e isso [ o uso de drogas ] nunca interferiu na minha rotina” revela.
Sobre o uso do crack, Maurício tem muita consciência das razões que levam ao uso prejudicial da substância. “Usei crack pela primeira vez misturado num cigarro de maconha. Eu tinha 20 anos na época. Depois meu uso continuou apenas de modo recreativo. Eu não me encaixo no estereótipo do usuário de crack porque sou branco, classe média e tenho ensino superior. Quando as pessoas pensam num usuário de crack não é essa imagem que vem à mente delas. O estereótipo é uma m****, porque ele afasta as pessoas da compreensão e as faz temer o usuário, que sempre será um menino magro, negro e que inspira ameaça. Tenho uma vida normal mas se estivesse em condições de precariedade, talvez meu uso dessas substâncias se tornasse bem prejudicial a mim e aos que me cercam”.