RIO DE JANEIRO - Em meio a uma conturbação social decorrente da paralisação dos caminhoneiros, a intervenção militar no Rio de Janeiro completou 100 dias nesta semana. Enquanto o governo tentava um acordo com os manifestantes, os militares foram autorizados a liberar rodovias, com o direito de assumir a direção dos veículos que estivessem parados, para assegurar o transporte de combustível e produtos alimentícios.
Mesmo cumprindo a função de desmobilizar o movimento, parte da categoria clamava pelo retorno dos militares ao poder. O que muitos talvez desconheçam é que, além do pedido ser considerado um crime pela Lei de Segurança Nacional, o Rio de Janeiro vivencia a intervenção das Forças Armadas pela 13ª vez nos últimos 10 anos. Os efeitos dessa convocação tão recorrente, contudo, são questionáveis.
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"Trata-se de um recurso caro que só deve ser empregado de forma pontual e emergencial para não ser desqualificado em razão de suas limitações estruturais. O uso das Forças Armadas tem sido banalizado", criticou a especialista em segurança pública, Jaqueline Muniz, em entrevista ao LeiaJá um mês após o início das operações.
Após um evento promovido pelo observatório militar da intervenção na quarta passada (30), o atual secretário de Segurança Pública, general Richard Nunes, reconheceu a complexidade da questão, em uma das poucas declarações públicas desde que assumiu o cargo. "Não há soluções mágicas", admitiu Nunes na coletiva de imprensa, alegando que não seria adequado comparar os índices deste ano com os de 2017.
De fato, o contraponto não é favorável ao período de atuação dos militares. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP), os índices relativos a óbitos pioram durante a intervenção: homicídio doloso teve um aumento de 8,9% (436 em abril de 2017 – 475 em 2018); letalidade violenta, que são tipos variados de crimes que resultam em mortes, subiu 9,8% (539 para 592) e homicídio decorrente de oposição à intervenção policial aumentou 26,3% (de 80 para 101).
Além disso, foi neste período que a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes foram executados em uma via pública, no centro do Rio, há poucos quilômetros do Palácio Duque de Caxias, onde funciona o gabinete da intervenção. O secretário de Segurança, entretanto, discorda dessa análise. "Um padrão comparativo com o ano passado é equivocado porque, no primeiro trimestre, tivemos uma greve da polícia que ocorreu, então, uma subnotificação de determinados crimes", argumentou.
Há um outro índice que chama atenção. O Fogo Cruzado, um Data Lab que agrega e disponibiliza informações através de um aplicativo e mapa colaborativo, contabilizou 2.309 tiros na região metropolitana do Rio nos três primeiros meses da intervenção, equivalente a um aumento de 86,36% do total de disparos no mesmo período do ano passado (1.239 tiros).
Quatro dos vinte bairros da capital onde mais houve tiroteios durante a intervenção, receberam operações militares: Praça Seca (1º no ranking com 100 disparos/tiroteios), cujas ações aconteceram neste mês; Cidade de Deus (2º com 68), Rocinha (3º com 68) e Vila Kennedy (5º com 63), sendo este último o escolhido pelas Forças Armadas para servir de 'laboratório' das ações em outras áreas.
"Nós temos uma proposta de transferência de responsabilidade dessas áreas que antes estavam sem patrulhamento para os batalhões da área. Isso não significa que não vão se produzir eventos de criminalidade, mas eles precisam ser mantidos sobre controle", afirmou o secretário.
Para Cecília Oliveira, especialista em segurança pública e uma das responsáveis pelo aplicativo, o número crescente de tiroteios é condizente com o aumento de homicídios por oposição à intervenção policial.
"Embora, claro, as mortes não tenham sido cometidas em sua totalidade por armas de fogo, vale ressaltar que dados de 2016 - últimos disponíveis - reiteram que 79% das vítimas de mortes intencionais na Baixada foram por armas de fogo. Número que ultrapassa a média do estado (74%) e do país (71%). O que é possível notar - portanto - é que a violência armada continua em patamares alarmantes", alerta.
Nunes encarou as análises como precipitadas e projeta resultados a longo prazo. "Nós temos de trabalhar de maneira integrada, efetiva, com planejamento e isso nós só começamos a fazer na plenitude a partir do mês de abril. Para nós, esses números [índices de criminalidade] têm de ser vistos com mais cautela e temos que ter uma visão de um prazo mais alargado. Tratar com esse imediatismo desses números, realmente, não vai nos levar a boas conclusões", avalia.
'Onda de violência'
Instaurada a partir de um decreto federal assinado no dia 16 de fevereiro, a intervenção foi justificada pelo aumento da violência no Carnaval carioca. "As pessoas lá não têm mais limites", disse Michel Temer, na época. Os bastidores em Brasília, no entanto, apontavam outro motivo: a inabilidade política do governo para aprovar a Reforma da Previdência e, com o decreto em voga até 31 de dezembro de 2018, nenhum Projeto de Emenda Constitucional (PEC) como o da reforma poderia sequer tramitar no Congresso.
O argumento da 'onda de violência' durante o Carnaval também foi rebatido pela diretora-presidente do ISP, Joana Monteiro. "Foi um carnaval muito parecido com o dos outros anos. Estou segura em dizer que não houve nenhuma explosão de violência neste ano", afirmou Joana, em entrevista ao jornal Estadão, pouco após o decreto.
De acordo com o instituto, o número de ocorrências deste ano (5.865) ficou próximo ao registrado em 2017 (5.773), quando houve a greve da Polícia Civil, e consideravelmente menor do que nos anos anteriores: 9.016 ocorrências em 2016 e 9.062 em 2015. Uma pesquisa do Datafolha, realizada em março, também revela certa desconfiança da população: mesmo apoiando, 71% dos entrevistados acham que a intervenção militar não trouxe alguma melhora para a segurança pública.
O general Richard Nunes, por outro lado, pontua a integração entre as polícias Civil e Militar e a cooperação com órgãos federais, o poder judiciário e o Ministério Público como avanços importantes. "Nós temos que consolidar esses ganhos, nem sempre são perceptíveis, mas pra nós que operamos essa política, isso é notório", enfatiza.
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Trabalhando inicialmente com a estrutura das Forças Armadas para capacitar policiais e recuperar a frota da Polícia Militar, além de doações de armas e munição por parte de empresários, o gabinete da intervenção passou a contar com uma cerca de R$ 1 bilhão para investir nas operações, recurso que levou o gabinete a criar uma secretaria para gerenciá-lo.
O governo estadual também viabilizou contrapartidas: a entrega de 265 novas viaturas da PM e os pagamentos da quarta parcela da dívida do Sistema Integrado de Metas (SIM) e do Regime Adicional de Serviço (RAS), hora extra remunerada para policiais militares e civis, totalizando R$ 28 milhões. "Temos que ter uma regularidade no fluxo de recursos que são alocados para a segurança pública, sejam eles humanos, materiais ou financeiros", ressaltou o secretário, ao que atribuiu de 'legado da intervenção'.